Amanheceu. A expectativa era grande, não sabíamos como seria a
chegada da nova hóspede. É certo que a hospedaria dada a ela resumiria-se,
conforme o combinado, a alguns fins
de tarde e a um pouso, que se daria semanalmente do sábado para o domingo.
Mesmo assim, há muito não tínhamos o hábito de receber visitas regularmente.
Ainda mais uma tão ilustre. E tão complicada era a estadia da hóspede em nossa
casa, pois ela pouco nos conhecia. Ou melhor, pouco me conhecia. Meu irmão e
minha mãe a visitavam todos os dias. Eu não. Por problemas de outrora, ainda
tinha muita dificuldade em freqüentar a casa dela, apesar de lá ser sempre bem
tratada. A dificuldade era a mesma para minha mãe e meu irmão, porém eles a
venciam bravamente.
Mas agora era diferente, nós a receberíamos. E procuramos pensar em tudo o que
íamos precisar, desde organizar as roupas dela no armário, abastecer a
geladeira com o necessário, alguns remédios que não podem faltar quando se
hospeda alguém, e coisas assim.
Conforme as horas passavam, a ansiedade aumentava mais e mais. E a hóspede
atrasou, para acabar de completar a angústia. Uma sucessão de sentimentos me
atordoavam. Não sabia ao certo o que ela significaria para mim. Tinha, como
obrigação, amá-la com devoção. Mas como gostar de alguém que você ainda não
conhece? E a culpa aumentava, pois eu, dentro de mim, sabia que queria e até
necessitava viver esse amor. Caso contrário, que espécie de ser humano seria
eu? Fria? Coração de gelo? Desesperador! E a hóspede que não chegava...
Foi quando escutei os cachorros latirem e o portão se abrir. Meu coração disparou,
como se fosse ter um enfarto. Era ela. Ficaria conosco o resto da tarde de
sábado e só iria embora no domingo, também à tarde. E chegou linda, porém quietinha.
Queria conhecê-la melhor, mas ela não me deu muita bola. Preferiu minha mãe, e
quando se viu sozinha conosco, sem nenhum representante da casa dela, destoou
totalmente da imagem inicial e começou a chorar desesperadamente. Desesperados
ficamos todos, sem saber o que fazer. Oferecemos tudo que havíamos preparado
para recebê-la, verificamos a roupa, para ver se não a incomodava, e nada. O
choro não cessava. Depois de algum tempo, meu irmão conseguiu acalmá-la um
pouco. Mas comigo não tinha papo, ela não me queria.
Fui para o quarto, desolada. Era necessário que ela se habituasse a freqüentar
nossa casa, pois aquilo seria uma constante. Mas como fazê-la entender, ela que
era a mais inocente de toda aquela história. Todos tínhamos alguma responsabilidade,
menos ela, e parecia que era justamente sobre ela que o castigo recaía. Por
isso chorava, e chorava com força e mágoa. A vida lhe deixou a missão de
conquistar seu lugar no mundo e as pessoas a sua volta, fardo injusto para uma
inocente. Mas como ainda não compreendia isso, chorava.
Minha mãe foi uma guerreira. Sabia que teria que vencer nossa hóspede pelo
cansaço, e que ela precisava entender que em nossa casa estaria protegida. Para
isso, no intento de fazê-la dormir, ficava de um lado para outro com ela chorando
nos braços, e incubou a idéia de cantar, obtendo sucesso. Depois de horas de
choro ferrenho e canto, ela adormecia, e minha mãe ia atrás, exausta.
Meu irmão também progredia a passos largos em seu relacionamento com ela. Meu
pai só observava de longe, sem esforços. Quanto às minhas investidas, tinham
sucesso parcial. Conseguia a atenção dela por pouco tempo, depois ela me
desprezava.
Algumas vezes, até saía de casa para não ver a cena da hora de dormir. O choro
e o canto de minha mãe, que me cortavam o coração. Sentia dó das duas, mas
principalmente da hóspede, que deveria se perguntar: “por que estão fazendo
essa maldade comigo, me tirando de casa sem perguntar se eu quero?” Aos poucos
ela foi entendendo que possuía duas casas, dois lares. E foi ficando mais
tranqüila.
Então ocorreu que um dia à tarde ficamos sozinhas, somente eu e ela. Minha
missão era fazer com que ela dormisse. Fiz inúmeras tentativas, todas
frustradas. Como entardecia e o sol já ia baixo, mas o calor era infernal,
resolvi dar uma volta a pé com ela pelo bairro. Com a brisa em nossos rostos,
pude arejar melhor minhas idéias. Não tinha motivo para sentir dó dela, ela era
linda, saudável, dona do sorriso mais encantador que já vi. E os olhos, ah, que
olhos! Virou atração do bairro. Todos queriam vê-la. E eu me senti orgulhosa.
Ela era um sonho, e se chorava, não era porque não gostava de nós, mas porque
chorar faz parte da condição humana. Era
uma defesa para a nova situação que enfrentava. Até meu pai, mais sisudo e
contra a hospedagem precoce, já se rendia aos encantos dela.
Quando percebi que o passeio já a cansara, pensei que agora ela poderia dormir.
Cheguei em casa e ninguém havia aparecido ainda. Já escurecera. Sentei-me no
sofá. Ela estava em meus braços, e percebi que esperava algo de mim, mas não
sabia o quê. Os olhinhos cor de jabuticaba, arredondados e com um leve
puxadinho nos cantos, com os cílios longos, curvados e bem definidos me fitavam
insistentemente. E me olhava nos olhos um misto de seriedade grave e ternura
infinita dos anjos do céu. Já reconhecia em mim uma pessoa em quem ela podia
confiar.
Comecei então a pensar no que fazer. Lembrei-me de mamãe. Sim, minha mãe canta
para ela, talvez seja isso que ela queira de mim. Mas cantar o quê? Mais uma
vez mamãe surgiu na minha frente, ao lado de vovó. Lembrei-me das músicas que
as duas cantavam para mim. Automaticamente me veio à memória a festa junina do
bairro em que dancei, com cinco anos. Neste dia, minha mãe me ensinou duas
modinhas de São João. E foi no banheiro, ela acabando de tomar banho, pois
trabalhava muito e quando chegava em casa eu literalmente pisava onde ela
pisava, não queria desgrudar. Depois lembrei do balanço da área dos fundos,
trazido e instalado cuidadosamente por papai, no qual insistia para que vovó me
empurrasse. E ia tão alto, que conseguia ver o céu atrás do meu telhado e
também o telhado da casa dos vizinhos. Foi então que tive a idéia, lembrei da
musiquinha que sempre cantava no balanço, e que me embalava também quando a
saudade de mamãe apertava de fazer doer, e com o auxílio de uma cadeira eu
subia no armário, onde dentro da caixa de remédios (ao meu alcance!) eu havia
escondido os retratos 3X4 dela, que me serviam de consolo nestas horas de
ausência materna. Inútil pensar que ela não soubesse que os retratos estavam
ali, só não sabia quem os colocara e com que intuito.
Mas voltando a minha hóspede, aquela era a música perfeita para contentar
aqueles olhinhos insaciáveis. Então, principiei a cantar baixinho: “Felicidade
foi-se embora e a saudade no meu peito, “inda” mora e é por isso que eu gosto.
Lá de fora porque sei que a falsidade, não vigora”. E os olhinhos cheios de
sonhos se abriram mais e começaram a prestar uma atenção enorme. Então
continuei: “A minha casa fica lá de trás do mundo, mas eu vou em um segundo
quando começo a pensar. O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a
gente voa quando começa a cantar?”
Os olhinhos se moviam dos meus olhos para a minha boca, e segui cantando. Ela
se fixou nos meus olhos de novo, e com a mãozinha atrevida começou a brincar
com uma parte do meu cabelo que se soltara do restante amarrado, creio que a
franja. E após um tempo, ela adormeceu. A luz apagada, a televisão ligada sem
volume, o sol lá fora que já se escondera. Um silêncio profundo reinou ali,
como se eu estivesse num altar, rodeada de anjos, assistindo ao sono daquela
criaturinha por quem meu coração começava a bater mais forte, por si só, sem
cobranças, assim como deve ser o amor verdadeiro. Foi a descoberta do amor mais
puro e sincero, um êxtase eterno de pura magia.
O portão se abriu e o encantamento foi quebrado. Era a mãe dela que vinha
buscá-la. Não tive outra alternativa senão entregá-la. Ao passar de um colo
para o outro ela mal acordou, e a mãe perguntou: “Estava gostoso o colinho da
titia? Mas agora temos de ir.”
E assim ela se foi. Fiquei sentada naquele ambiente pensando em
muitas coisas. Mas os anjos parece que ali ficaram comigo, e senti uma grande
emoção. Eu a amava não por obrigação, mas porque a amava, simplesmente.
Encontrei-me nessa verdade e festejei a alegria de saber que no dia seguinte
ela voltaria.
Vanessa Zordan