segunda-feira, 31 de agosto de 2009

INGRATIDÃO





Eu estava na tenra idade dos oito anos. Era sabida para andar na vizinhança, mas não dominava caminhos mais distantes. Insegura, perdera a carona da prima/babá para a escola por ordem expressa de minha mãe “Você tem que aprender a andar sozinha”, dizia ela. Além disso, minha prima não poderia mais me buscar no horário em que eu saía. Ia estudar, me parece. Eram tempos mais tranqüilos, a cidade era pacata e não oferecia perigos.  Sobre o caso, meu irmão, palpiteiro, acrescentava: “É fácil. É só pegar a rua que passa do lado da escola e ir reto até chegar no bar do “Dócio”. Depois você sabe chegar em casa!” “Como, sei?”Isso porque não era com ele. Eu não queria voltar sozinha! E da garupa da bicicleta da prima/babá observei que havia uma turminha que fazia sempre o mesmo caminho e que era parecido com o meu. Um era da minha sala, e tinha um menino maior com eles, que parecia ser responsável pelos outros. Será que era bravo? Só dele ser grande já me enchia de medo, um terror incontrolável. A professora da pré-escola sempre nos dizia que não era para nos misturarmos com os alunos grandes, pois poderiam nos bater. E me veio à memória o dia em que eu e um coleguinha saímos da sala para ir ao banheiro e quando voltamos, tocou o sinal do recreio das crianças maiores. Pronto! A porta estava trancada e ficamos apavorados. O menino começou a bater na porta e a chorar, pedindo para que a professora abrisse. Foi um escândalo, a escola toda ficou sabendo, e depois disso a professora nos explicou que as crianças grandes não eram tão más assim. Mas, nunca se sabe! Portanto, não me atreveria a pretender voltar com eles para casa e nem sequer a perguntar se podia. Pensei em segui-los, assim andaria menos tempo sozinha. Incubei a idéia, tracei o plano. Eles não poderiam me ver. Meninos não gostavam muito de se misturar com meninas. Na saída da escola sempre xingavam a até jogavam pedras nos seres do sexo oposto. Estaria num “mato sem cachorro” se eles me descobrissem. Mas correria  o risco.
Chegou o dia, minha prima não iria mais me buscar. Sob uma enxurrada de recomendações de mamãe para que tomasse cuidado e não olhasse para o lado, fui para a escola certa de que meu plano teria êxito. Tocou o sinal da saída e esperei que meus "companheiros" saíssem na frente. Esperei também que se adiantassem um pouco, para que eu ficasse de longe e eles não percebessem que eu os acompanhava. Tudo transcorreu muito bem, até que eles dobraram uma determinada esquina, depois de muito andar. Então foi um susto. Previ que morassem mais perto de casa, mas calculei que pelo tanto que já havíamos andado, minha casa deveria estar próxima. Quando somos crianças, tudo parece tão mais longe! As coisas parecem maiores também. Deve ser por causa do nosso tamanho e o de nossas pernas. Então fiz o que meu irmão falou. Andei mais um pouco, tensa, até avistar o bar dos doces da minha infância e me sentir aliviada. Realmente o caminho era fácil, mas eu continuava não querendo voltar sozinha para casa. Então passei a acompanhar os meninos todos os dias. O plano era o mesmo, esperava que eles saíssem, se adiantassem, e seguia atrás, na segurança de saber que teria uma companhia, meio torta, mas teria. Também percebi que quando eles viravam a esquina era sinal de que não faltava muito para chegar à minha casa. Mas ainda tinha medo de ser descoberta. E se eles percebessem que eu os seguia e brigassem comigo? Provavelmente o fariam, ou zombariam de mim. Certeza!
Até que um dia, saí quase junto deles. Achei que ficaria estranho esperar que eles se adiantassem, pois estavam paralelos a mim, porém do outro lado do canteiro onde ficava o São Francisco. Na minha escola havia uma estátua de São Francisco de Assis bem no meio de um canteiro. Tanto fazia irmos por dentro ou por fora, pela calçada. Chegávamos à rua 15 de novembro, a que pegávamos em linha reta.
O menino maior me viu, e veio em minha direção. Fiquei paralisada, sem saber o que fazer. Teria sido descoberta? Estariam eles esperando uma oportunidade para me desmascarar? Não entendi muito aquele movimento dele em minha direção. Ao chegar mais perto, escutei-o dizer: “Você está sozinha, não? Venha conosco, sei que moramos perto”. Estremeci! Mas ao decifrar a mensagem, vi aquele rosto calmo, aquele sorriso bonito e o jeito bondoso do menino maior. Deu-me a mão, e fui sem pensar. O irmão mais novo, da minha sala, pareceu não ter gostado muito, mas nem liguei. Era pequena, mas já sabia apreciar boa companhia. E depois disso, todos os dias voltava para casa com eles, agora sem precisar de convites. Teria sido meu primeiro amor, caso eu fosse afeita a precocidades. Mas como não era, logo fiz amizade com algumas meninas da sala e a necessidade de me auto-afirmar na turma foi maior. Fui me distanciando dos novos amigos, à guisa de gente que nem ligava muito para mim. Renunciei, não sei o porquê, a companhia de quem me estendeu a mão, somente para que pudesse fazer parte da turma das meninas que eram constantemente elogiadas pela professora e merecer o prêmio de voltar para casa com elas.
Quando me dei conta disso, senti uma melancolia muito grande. O menino maior nem tinha nome, era relação na qual não se fazia questão de formalidades nem posições perante os mais velhos. Deve ter estranhado meu afastamento, até comentou certa vez em tom de cobrança branda. Crianças nem sempre sabem retribuir favores, e me sentia como se devesse algo, uma traição involuntária. Até hoje, quando lembro da minha negligência, sinto um gosto amargo na boca. Flor que se fechou na condição de ser somente espinho, ingrata.


Vanessa Zordan 

domingo, 22 de março de 2009

NÃO É DIFRENTE, É ORIGINAL!

E não é que, depois de tantas conversas, eu sonhei mesmo?? E foi assim, o moço tinha acabado de entrar num Reality Show, mas não foi muito bem recebido. Ele era ruivo, e ninguém sabia o por que, mas não gostaram dele. Os participantes haviam comentado que não achavam graça em pessoas ruivas. Falava-se a todo o momento que o novo participante foi hostilizado por causa dos cabelos vermelhos e da pele extremamente branca. “Mas o que isto tem a ver?” Só sei que foi assim o sonho e acordei pensando. Alguma informação ficou processada em mim, além das bobeiras que se vê na TV (no meu caso, se escuta) para eu ter sonhado isso. Tinha um ruivo na minha escola, e não que eu fosse um modelo de beleza, mas realmente o achava muito esquisito. Mas será que tudo que é atípico, diferente, gera resistência? Engraçado isso, mas temos uma tendência enorme a amar ou odiar quem é bem diferente de nós, tanto em comportamento, quanto em aparência. São sempre extremos. Mestiços odeiam ou idolatram loiros, e vice versa. Com os ruivos isso também ocorre. Ouvi dizer uma vez que eles, os ruivos, são muito sem graça. Como se a aparência pudesse determinar o interior das pessoas. Já diz o provérbio, “quem vê cara não vê coração.” Mas como explicar o número enorme de pessoas que tingem o cabelo de vermelho por acharem uma cor forte, cheia de personalidade?
É uma questão a se pensar. Lembro de um programa onde se falava da vida escolar de um ruivo famoso que é extremamente inteligente, astro da música nacional. Poucos o conseguem achar bonito, mas muitos admiram seu estilo. Lembro-me que um professor disse que via uma bela imagem, de lá de cima, da sala dos professores, quando visualizava o tal músico lá em baixo, no pátio. Dizia que era muito bonito ver o reflexo dos cabelos vermelhos sob o sol da manhã, e que apesar de ele ser um adolescente introvertido, aquilo já mostrava a força que ele teria quando ficasse adulto. E teve mesmo. Talvez não fosse regra, mas uma das coisas mais interessantes que o professor guardou do músico foi esta imagem, vista só por uma das partes.
Já Clarice Lispector, em seu conto “Tentação”, fez o inverso do professor do músico. Ela conta a estória de uma menina ruiva, com soluço, que se sente diferente do mundo, das pessoas. Realmente, em nosso país, os ruivos somam uma pequena parcela da população. São raros, e talvez por isso precisem se auto-afirmar. “ Que fazer de uma menina ruiva e com soluço?” A “menina vermelha” do texto de Clarice se sente sozinha, e se encanta com um cão. Esse amor a 1ª vista acontece porque o cão também era ruivo, assim como ela. Os dois se conhecem, se apaixonam, desejam um ao outro. A menina se vê no cão, como se ele fosse o companheiro perfeito para a sua diferente condição de ter o cabelo vermelho e ninguém para dividir suas angústias. O cão estava ali, e era a cara dela. Hipnotizados um pelo outro, ela acredita ter achado a solução para seus problemas. Mas o cão já tinha dono, e não podia pertencer a ela. O soluço não cessou, e nem a busca pela identidade da criança. Mas ela não era uma criança qualquer, era ruiva. Também outras crianças de outras etnias passam por isso, mas a ruiva se sentia a mais diferente de todas. Mais atípica.
Bom, mas para encerrar esta pequena polêmica que meus sonhos afloraram, vou deixar uma opinião bem particular. Cá entre nós, realmente o professor do tal músico tinha razão, pois deve ser uma bela imagem o reflexo dos cabelos de um garoto ou garota ruivos sob o sol da manhã. Quantos versos um poeta não pintaria dessa imagem, não é mesmo? 


Vanessa Zordan 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O QUE NÃO É PARA SER...

Não demorou muito para que os dois se conhecessem. Bastaram alguns olhares e um clique. E pronto. “Start” uma nova história de amor, com direito a Blogs e home pages. Janelas...e portas se abriram para um mundo colorido e ilusório. Sininhos tilintaram a “Balada do amor inabalável”, era tudo o que ela sempre imaginou. E como imaginava essa garota! Sonhava borboletas e dormia em nuvens. E por aí foram, conversas e mais conversas pelo computador. Um mundo de sonhos invadiu a varanda, a sala, o quarto, a cozinha e a casa toda. Invadiu -a por inteiro. O sentia sempre ali, pertinho. Bastava ligar o PC. Estavam empolgadíssimos um com o outro, até que o inevitável aconteceu. Deixaram de habitar o virtual para viver o real. E tudo porque ela lhe solicitou a presença, e ele compareceu. Percebeu então que ele não era capaz de negar-lhe isso, e aí foi o êxtase!
Mais sonhos invadiram o coração e a memória da moça, memória esta que era maior que a do computador. Gravou gestos, olhares, trejeitos, sorrisos e promessas na pasta das emoções, que para ela era o coração da alma. Com isso, não parou de sonhar. Julgou que o arquivo já estivesse salvo no coração dos dois. E foi acumulando novos arquivos, precisando até de um pen drive.
No plano real, sentia-se a personagem principal da estória de amor do livro mais lindo, que ao ler poemas ardentes, chorava de emoção por achar que sua história logo teria um final feliz. Mais uma vez, solicitou-lhe a presença por ter certeza que ele não a negaria. O mundo girou e girou. Conversas de passados distantes e sonhos futuros. Sentia-se a mocinha da comédia romântica que ao som de baladas chorava de emoção por saber que sua história logo teria um final feliz.
E, de novo, solicitou-lhe a presença por ter a convicção de que ele nunca a negaria. Só que desta vez, a Internet saiu do ar e ele não fez questão de manter a conexão por outros meios. Sentada no sofá da sala, ela passou drásticamente de personagem de vídeo clipe de cantora clichê que encerra a cena com um beijo a atriz principal de novela mexicana, e chorou copiosamente ao som de um bolero por saber que sua história teria um final. E teve mesmo. A lixeira do computador passou de vazia a cheia em segundos.


Vanessa Zordan 

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

DÚVIDA X CERTEZA

Felizes são os que têm o privilégio da dúvida.
Dúvida se pode colorir de sonhos.
Já a certeza nunca é de todo certa
E ainda traz consigo, a ferro quente,
A falsa embriaguez da verdade.

Vanessa Zordan 

MEU CASULO


A borboleta voou.
Foi ser quem eu não sou.
Saí do meu casulo,
mas não sei voar como ela.
E como libélula também não consegui voar.
É que meu casulo é interno,
e dele não há como fugir. 

Vanessa Zordan 

O NADA

Barulho a minha volta,
Silêncio em mim.
Imensidão de sentimentos
No nada que é a minha vida.
Será que nada é mesmo maior que alguma coisa?

Vanessa Zordan 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

RELÓGIO

O relógio não pára.
E a saudade acompanha


O ritmo frenético dos ponteiros.


Tudo que é bom deveria

                                      Funcionar em sentido anti-horário.

                                                                                                   Vanessa Zordan 

sábado, 17 de janeiro de 2009

PALAVRA

Há um idioma inteiro a meu serviço
para expressar meus sentimentos.
Mas qual era mesmo a última palavra boêmia
que eu queria escrever nesta página
em noite fresca de lua cheia?
Seria amor?
Não sei , ela fugiu de mim.
Passou, como tudo na vida.

Vanessa Zordan 

VERDADES...

Nós dois: Metades que não se encaixam, mas que teimam em arrumar pecinhas para promover o enlace.

Você: Pessoa que não percebe o encaixe falho.

Eu: Sonhadora ... Certeza!

Vanessa Zordan 

CARLÃO!


E sabe aquele nosso combinado de passar 1 ano indo a todas as festas da cidade para ver qual ainda prestava, e no ano seguinte substituir as excluídas por churrascos? Pois é, passaram as festas e eu nem fui a todas, passaram os dias e não vi mais você, passou a semana e fiquei sabendo que te perdemos. Chorei. E o que me dói mais é saber que o tempo não está nas nossas mãos. Programar ações para dali um ano não funciona, pois às vezes pode faltar uma das peças principais para a realização delas. E os churrascos não virão mais. Mas o amargo de deixar o tempo passar, inerte ao que não se pode mudar, este sim persistirá. Este texto não é para que as pessoas vejam, mas sim para eu mesma entender o que aconteceu, e perceber que faltou dizer para você o quanto te admirava, desde quando te dei aula até as farras na rua. E quem sabe assim eu não aprenda a lição de não deixar o tempo passar por minhas mãos. Mas o mais importante ficou: fomos amigos! Inesquecivelmente!!
***IN MEMORIAN

Vanessa Zordan 

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

SOLIDÃO


A pior solidão que existe é aquela


que se instala em nós exatamente


quando estamos rodeados de uma

imensidão de pessoas.

"Não me roube a solidão sem me oferecer, de fato, companhia."

A HÓSPEDE

Amanheceu. A expectativa era grande, não sabíamos como seria a chegada da nova hóspede. É certo que a hospedaria dada a ela resumiria-se, conforme o combinado, a alguns fins de tarde e a um pouso, que se daria semanalmente do sábado para o domingo. Mesmo assim, há muito não tínhamos o hábito de receber visitas regularmente. Ainda mais uma tão ilustre. E tão complicada era a estadia da hóspede em nossa casa, pois ela pouco nos conhecia. Ou melhor, pouco me conhecia. Meu irmão e minha mãe a visitavam todos os dias. Eu não. Por problemas de outrora, ainda tinha muita dificuldade em freqüentar a casa dela, apesar de lá ser sempre bem tratada. A dificuldade era a mesma para minha mãe e meu irmão, porém eles a venciam bravamente.
Mas agora era diferente, nós a receberíamos. E procuramos pensar em tudo o que íamos precisar, desde organizar as roupas dela no armário, abastecer a geladeira com o necessário, alguns remédios que não podem faltar quando se hospeda alguém, e coisas assim.
Conforme as horas passavam, a ansiedade aumentava mais e mais. E a hóspede atrasou, para acabar de completar a angústia. Uma sucessão de sentimentos me atordoavam. Não sabia ao certo o que ela significaria para mim. Tinha, como obrigação, amá-la com devoção. Mas como gostar de alguém que você ainda não conhece? E a culpa aumentava, pois eu, dentro de mim, sabia que queria e até necessitava viver esse amor. Caso contrário, que espécie de ser humano seria eu? Fria? Coração de gelo? Desesperador! E a hóspede que não chegava...
Foi quando escutei os cachorros latirem e o portão se abrir. Meu coração disparou, como se fosse ter um enfarto. Era ela. Ficaria conosco o resto da tarde de sábado e só iria embora no domingo, também à tarde. E chegou linda, porém quietinha. Queria conhecê-la melhor, mas ela não me deu muita bola. Preferiu minha mãe, e quando se viu sozinha conosco, sem nenhum representante da casa dela, destoou totalmente da imagem inicial e começou a chorar desesperadamente. Desesperados ficamos todos, sem saber o que fazer. Oferecemos tudo que havíamos preparado para recebê-la, verificamos a roupa, para ver se não a incomodava, e nada. O choro não cessava. Depois de algum tempo, meu irmão conseguiu acalmá-la um pouco. Mas comigo não tinha papo, ela não me queria.
Fui para o quarto, desolada. Era necessário que ela se habituasse a freqüentar nossa casa, pois aquilo seria uma constante. Mas como fazê-la entender, ela que era a mais inocente de toda aquela história. Todos tínhamos alguma responsabilidade, menos ela, e parecia que era justamente sobre ela que o castigo recaía. Por isso chorava, e chorava com força e mágoa. A vida lhe deixou a missão de conquistar seu lugar no mundo e as pessoas a sua volta, fardo injusto para uma inocente. Mas como ainda não compreendia isso, chorava.
Minha mãe foi uma guerreira. Sabia que teria que vencer nossa hóspede pelo cansaço, e que ela precisava entender que em nossa casa estaria protegida. Para isso, no intento de fazê-la dormir, ficava de um lado para outro com ela chorando nos braços, e incubou a idéia de cantar, obtendo sucesso. Depois de horas de choro ferrenho e canto, ela adormecia, e minha mãe ia atrás, exausta.
Meu irmão também progredia a passos largos em seu relacionamento com ela. Meu pai só observava de longe, sem esforços. Quanto às minhas investidas, tinham sucesso parcial. Conseguia a atenção dela por pouco tempo, depois ela me desprezava.
Algumas vezes, até saía de casa para não ver a cena da hora de dormir. O choro e o canto de minha mãe, que me cortavam o coração. Sentia dó das duas, mas principalmente da hóspede, que deveria se perguntar: “por que estão fazendo essa maldade comigo, me tirando de casa sem perguntar se eu quero?” Aos poucos ela foi entendendo que possuía duas casas, dois lares. E foi ficando mais tranqüila.
Então ocorreu que um dia à tarde ficamos sozinhas, somente eu e ela. Minha missão era fazer com que ela dormisse. Fiz inúmeras tentativas, todas frustradas. Como entardecia e o sol já ia baixo, mas o calor era infernal, resolvi dar uma volta a pé com ela pelo bairro. Com a brisa em nossos rostos, pude arejar melhor minhas idéias. Não tinha motivo para sentir dó dela, ela era linda, saudável, dona do sorriso mais encantador que já vi. E os olhos, ah, que olhos! Virou atração do bairro. Todos queriam vê-la. E eu me senti orgulhosa. Ela era um sonho, e se chorava, não era porque não gostava de nós, mas porque chorar faz parte da condição humana.  Era uma defesa para a nova situação que enfrentava. Até meu pai, mais sisudo e contra a hospedagem precoce, já se rendia aos encantos dela.
Quando percebi que o passeio já a cansara, pensei que agora ela poderia dormir. Cheguei em casa e ninguém havia aparecido ainda. Já escurecera. Sentei-me no sofá. Ela estava em meus braços, e percebi que esperava algo de mim, mas não sabia o quê. Os olhinhos cor de jabuticaba, arredondados e com um leve puxadinho nos cantos, com os cílios longos, curvados e bem definidos me fitavam insistentemente. E me olhava nos olhos um misto de seriedade grave e ternura infinita dos anjos do céu. Já reconhecia em mim uma pessoa em quem ela podia confiar.
Comecei então a pensar no que fazer. Lembrei-me de mamãe. Sim, minha mãe canta para ela, talvez seja isso que ela queira de mim. Mas cantar o quê? Mais uma vez mamãe surgiu na minha frente, ao lado de vovó. Lembrei-me das músicas que as duas cantavam para mim. Automaticamente me veio à memória a festa junina do bairro em que dancei, com cinco anos. Neste dia, minha mãe me ensinou duas modinhas de São João. E foi no banheiro, ela acabando de tomar banho, pois trabalhava muito e quando chegava em casa eu literalmente pisava onde ela pisava, não queria desgrudar. Depois lembrei do balanço da área dos fundos, trazido e instalado cuidadosamente por papai, no qual insistia para que vovó me empurrasse. E ia tão alto, que conseguia ver o céu atrás do meu telhado e também o telhado da casa dos vizinhos. Foi então que tive a idéia, lembrei da musiquinha que sempre cantava no balanço, e que me embalava também quando a saudade de mamãe apertava de fazer doer, e com o auxílio de uma cadeira eu subia no armário, onde dentro da caixa de remédios (ao meu alcance!) eu havia escondido os retratos 3X4 dela, que me serviam de consolo nestas horas de ausência materna. Inútil pensar que ela não soubesse que os retratos estavam ali, só não sabia quem os colocara e com que intuito.
Mas voltando a minha hóspede, aquela era a música perfeita para contentar aqueles olhinhos insaciáveis. Então, principiei a cantar baixinho: “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito, “inda” mora e é por isso que eu gosto. Lá de fora porque sei que a falsidade, não vigora”. E os olhinhos cheios de sonhos se abriram mais e começaram a prestar uma atenção enorme. Então continuei: “A minha casa fica lá de trás do mundo, mas eu vou em um segundo quando começo a pensar. O pensamento parece uma coisa à-toa, mas como é que a gente voa quando começa a cantar?”
Os olhinhos se moviam dos meus olhos para a minha boca, e segui cantando. Ela se fixou nos meus olhos de novo, e com a mãozinha atrevida começou a brincar com uma parte do meu cabelo que se soltara do restante amarrado, creio que a franja. E após um tempo, ela adormeceu. A luz apagada, a televisão ligada sem volume, o sol lá fora que já se escondera. Um silêncio profundo reinou ali, como se eu estivesse num altar, rodeada de anjos, assistindo ao sono daquela criaturinha por quem meu coração começava a bater mais forte, por si só, sem cobranças, assim como deve ser o amor verdadeiro. Foi a descoberta do amor mais puro e sincero, um êxtase eterno de pura magia.
O portão se abriu e o encantamento foi quebrado. Era a mãe dela que vinha buscá-la. Não tive outra alternativa senão entregá-la. Ao passar de um colo para o outro ela mal acordou, e a mãe perguntou: “Estava gostoso o colinho da titia? Mas agora temos de ir.”
E assim ela se foi. Fiquei sentada naquele ambiente pensando em muitas coisas. Mas os anjos parece que ali ficaram comigo, e senti uma grande emoção. Eu a amava não por obrigação, mas porque a amava, simplesmente. Encontrei-me nessa verdade e festejei a alegria de saber que no dia seguinte ela voltaria. 

Vanessa Zordan

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O QUE EU QUERO

Quero a minha vida

Cheia de poesia.

O sentido real é muito chato.

Abaixo à sem-gracisse,

E viva a subversão!!!

Vanessa Zordan 

OBJETO DIRETO



Você é meu complemento:
Verbal na ação e nominal no desejo.
O objeto direto das minhas variações
em voz passiva.

Vanessa Zordan 

DO MESMO JEITO

Por que ser é
menor que existir.
se só existimos sendo,
e se não somos, não existimos?
Os dois tinham que ter o mesmo tamanho!

Vanessa Zordan 

E O QUE É PEQUENO...

O mundo está cheio
de pessoas pequenas
que fazem coisas pequenas
e que se incomodam com coisas pequenas.
Mas apesar de toda essa pequenez
são capazes de grandes estragos.

Vanessa Zordan 

ESTA É PRÁ VOCÊ

Tudo começou assim, mais uma novidade entre as outras que eu vivia. A profissão finalmente estava sendo posta em prática, depois das comemorações da formatura. Novidades, medos e uma grande insegurança. Gagueira, vergonha, falta de ar. Incômodos constantes de “não sei quem sou” tomavam conta de mim. Um novo mundo batia à minha porta, e tinha o nome e a cara de uma escola. Na sala dos professores lotada, mais incômodos. Fora do ninho e da órbita, me sentia qualquer coisa, menos professora.
Nesta confusão de sentimentos, certo dia eu notei a meu lado, depois de longos minutos, como era de minha natureza (“Fantástico mundo de Boby”), uma moça. A conversa iniciou-se, pouca, seca. Depois de um tempo, descobrimos uma coisa em comum. Morávamos perto. E o combinado foi uma carona no primeiro horário do dia seguinte, dada por mim a ela, uma vez que meu pai me levaria para a escola. A troca de telefones selou o combinado, que não ficou bem certo: “isso se meu sogro não for me levar”. Era casada, o que a princípio impossibilitava uma possível amizade, ou o que eu conhecia por amizade.
À noite, a espera do telefonema. “Será que ela vai ligar?”. E logo depois do jornal, o toque. Era ela, íntima, sem cerimônia: “Você me pega em casa, então? Amanhã antes das 7:00 ?”. “Ok”, respondi. Menina espevitada, tão solene na sala dos professores, e tão outra ao telefone. Engraçado, mas gostei dela. Precisava de alguém para conversar em território que eu ainda não conhecia direito. E para a minha surpresa, em pouco tempo estava freqüentando a casa dela, conhecendo sua história. A afinidade foi crescendo em algo que transcendia a profissão, as diferenças, o vocabulário e a maneira de se portar. Não se tratava somente dos mesmos gostos, tratava-se também de troca de carinho e de experiências, mais as delas do que as minhas. Típico da grandeza de quem sabe ensinar, como ela sabe. E aos poucos ela foi me resgatando do abismo e me mostrando o caminho das pedras, com tudo que eu ia encontrar, dos espinhos às flores, devidamente explicados e prontos para mim. Prevendo coisas, adivinhando sentimentos, trazendo apoio e consolo. Em alguns momentos, ela foi deixando as coisas por minha conta, dizendo que acreditava em mim e me incentivando a caminhar sozinha. Me deixou grandes heranças, como falar palavrão e não levar desaforo para casa. Me fez sentir uma vontade imensa de ter letra bonita e raiva de mim mesma por ter feito Letras e não História. Depois somamos as minhas Letras com a História (e estórias) dela, e o resultado foi um misto de sentimentos que partiram de descobertas em conjunto a comprar coisas iguais à 250km uma da outra. Intenso, não?Menina do cabelo dourado, que com sua generosidade me ensinou a ser generosa também, e com quem aprendi a ser o que sou hoje. Pessoa a quem devo tanto, e com quem fiz descobertas importantes em horários atípicos, como sábado a tarde tomando café. Menina com quem minhas afinidades foram além das caixas de sucrilhos, da manteiga e não margarina e de certa marca de achocolatado em pó, e que passaram também de conversas intermináveis sobre Drummond, Quintana, Clarice, Che Guevara e Fidel. Chegaram a um encontro de almas. É o que eu chamo de amizade.
***DEDICADO A KELLY CRISTINA MONTE

Vanessa Zordan 

MUDANÇA DE NOME


É dela mesmo que eu estou falando, você sabe quem é. Diz-se que se chama Ana Paula, mas parece que mudou de nome. Maria. Bem que poderia ser Maria Paula ou até mesmo Ana Maria. Mas é Maria mesmo a Ana Paula. É que, dia desses, ele me disse que mudaria de nome se não viesse em casa no outro dia me ver. E eis que, no dia seguinte toca o telefone e o que eu escuto? “Oi Nessa, tudo bem? É a Maria!” Dei risada da minha amiga desnaturada que eu entendo profundamente porque é igualzinha a mim. Mas essa coisa de nome de nada adianta. Fosse Ana Maria, ou Maria Paula, ou só Ana, ou só Paula, ou Maria unicamente, ela seria a mesma moça do cabelo dourado, inteligência única e gênio ímpar. A mesma que está sempre ali do meu lado, mesmo que não me visite. A mesma que se joga nas coisas que faz, que sofre por antecedência e que exagera no riscado. Depois faz piadas dos seus destemperos e tira boas lições deles. Mas todos esses destemperos são tão legítimos, tão cheios de classe, tão verdadeiros e intensos, que transparecem a alma autêntica da Ana Paula, que mesmo que se chamasse Maria, eu a amaria (plagiando música já conhecida), porque ela me liga e me chama de tratante. Porque ela me põe para cima e me fala a verdade. Porque ela é divertida ao extremo. Porque ela é consciente da falta que faz às pessoas e não faz pouco caso disso. Porque ela sempre fala a coisa certa na hora certa. Porque ao lado dela um montão de gente se sente feliz. Porque ela é a beleza em pessoa, interiormente e exteriormente. Porque ela é Ana. Mesmo que queira mudar de nome. É minha irmãzinha do coração! 

Vanessa Zordan 


***DEDICADO A ANA MACEDO

CIRANDA

Eram crianças, mas achavam que sabiam o que era namorar. Eram tempos mais amenos. Namoro, naquela época, resumia-se a dar preferência ou proteção durante as brincadeiras, ter o direito de dançar com o par em questão nos bailinhos de aniversário das crianças do bairro, pegar na mão e, em alguns casos de intimidade maior, dar um beijo, que poderia ser na boca. Além, é claro, do prazer de dizer aos outros que namorava, e quem.
Ela queria, ele nem tanto. Ela escrevia cartinhas. Ele as lia, e ficava com o mérito, recebendo elogios orgulhosos do pai porque já estava mostrando a que veio. Além disso, ela não era a única e nem a mais bonita das meninas que o paqueravam, o que justificava o orgulho do pai. Dançariam na festa junina do bairro, ensaiaram o mês inteiro, mas no dia ele teve que fazer uma viagem e ela, frustrada, tratou de arrumar outro par para dançar.
Namoraram (pelo menos na cabeça dela), casaram-se, isso sim! Com direito a enfeites no cabelo, cerimônia, flores, padrinhos e a molecada do bairro em peso prestigiando o acontecimento, que se daria no campinho do bairro. Digo se daria porque nesse dia o noivo não apareceu, e a cerimônia foi acontecer, de fato, dias depois, mais simples e com menos testemunhas. Mas concretizou-se, com troca de alianças com anel de doce e o tão esperado sim. O padre foi o irmão da noiva. Depois disso, não foram mais nada, acho que nem amigos.
Cresceram. Ele namorou e separou-se. Ela assistiu. Mais tarde, ele cogitou ter qualquer coisa com ela. Ela achou que era brincadeira e nada aconteceu. Estudaram, ela mudou de casa. Ele namorou de novo, ela sempre a procura, mas nunca sozinha. Porém, nunca com a pessoa certa. Ele mudou de cidade, mas vinha sempre à casa dos pais. Ela ainda estava no mesmo lugar.
Ele separou de novo, pediu para ela o telefone de uma colega com quem ele já havia se relacionado. Ela não o tinha, mas desmanchou-se em empenhos para conseguí-lo, torcendo para que desse certo, pois eram duas pessoas legais. Ele voltou com a ex, e esta expressava um ciúme ferrenho dela que, esqueci-me de contar, desde os tempos imemoriais, era a melhor amiga da irmã dele. Ela namorou também, separou, foi morar fora. Passou algum tempo. Ele teve vários ganhos, ela também. Ambos tiveram perdas, sobretudo amorosas, sofreram neste quesito, procuraram incansavelmente o amor, enrolaram-se com a distância, que sempre os fazia ficar longe de quem amavam. Deram muitas voltas nesta vida, e em uma delas, tempo presente, caem agora cara-a-cara um com o outro. Sentimentos esquecidos fervilham, como num vulcão em erupção. Doces lembranças vêm à tona, sentem-se bem em compartilhá-las. Descobrem afinidades, ouvem coisas agradáveis, percebem o cheiro da flor e a beleza do céu. Sentidos aguçados. E agora, o que será que o destino reserva para esses dois corações?






Vanessa Zordan

FOI ASSIM...

Luiza, com dois anos e meio: Tia...ô tia...
Vanessa: Oi...
Luiza: “Cê” sabe, o menino...
( Xiiii, lá vem história)
Vanessa: Que que tem o menino?
Luiza: Foi assim, tia. O menino “tava” lá na “fente” da casa dele conversando com o “miguinho” dele.
Vanessa: Hã...
Luiza: Aí, o menino chamou a mãe dele. Ele chamou, chamou, chamou, e ela não veio. Chamou e ela não veio e tal, e tal.
Vanessa: E aí?
Luiza: Ele chamou e ela não veio, aí ele ficou “fudido” , tia. Bravo mesmo!
Vanessa: Hahahahaha...
É, peço perdão à pedagogia e ao bom comportamento, mas tive que rir! 


Vanessa Zordan

A VOLTA

A noite acabou, volto para a casa
Desta vez acompanhada por você.
E por mais que pareça que não
Tudo em mim ficou gravado, tatuado,

De um jeito que não sai mais.

A volta, principalmente.
A paisagem do céu
Um grande desenho de nuvem
Obtuso, cheio de significados
Em contraste com o cinzento céu,
Que foram muito bem observados por você.

E ficaram em mim a bela paisagem,
O céu, a nuvem, a esperança da manhã,
A discussão sobre Jean Paul Sartre
E você...
Ficaram em mim...

Desculpa se não me entrego
Se não me jogo de olhos fechados.
Perdão por essa dificuldade
De ser quem eu sou
Principalmente porque sei
Que com você eu posso
Tirar a roupa, falar bobeiras
Me descabelar, fazer o que eu gosto
Te fazer delirar e esquecer de sofrer!

Desculpa se eu não faço
As coisas como elas devem ser
Ou melhor, como elas não devem ser.
Mas é que estou me escondendo de você
E me escondendo de mim.



Vanessa Zordan

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

CAIXA DE MADEIRA ESCURA


A tarde caiu cinza na nova casa, que não era tão nova assim. Já tinha um ano ali, mas aquela era a última noite que eu passaria nela. No dia seguinte ia embora da cidade sozinha, e a minha família mudaria de novo de casa, e agora de bairro. Mas lembranças mesmo eu tinha da outra casa, aquela maior e mais feia, dobrando a esquina. Aquela sim trazia lembranças, embrulhadas na caixa de madeira escura, porque eu gostava mais assim, escuro. Tanto que só comprei móveis claros por insistência de mamãe. E depois não consegui comprar mais nada escuro porque não combinava com o resto. Naquela caixinha havia lembranças de muitos tempos, uma seqüência cronológica que se bagunça ao sabor dos sentimentos, dolorosa e ao mesmo tempo feliz. Dores que ficaram marcadas no coração, com gosto de “que pena, não posso voltar atrás.” O mesmo dó que sentia das bonecas no frio e necessitava levantar da cama e cobrí-las com a toalha em cima da cadeira, sob protestos da vovó, doce lembrança ainda vivente, que dizia para eu ir dormir que “boneca não sente frio não”. A caixa de madeira escura, que guardava o amargo da ausência de minha mãe quando tinha que trabalhar a noite, o que era regularmente. A peraltice de esperar a hora do meu pai ir buscá-la para me jogar na cama da vovó e fazer ela ir me buscar e me colocar na minha cama. A negligência com a mesma avó porque ela vivia atrás de mim e do meu irmão. Crianças que éramos, renegávamos os cuidados, achávamos chatas as observações e gritávamos com a pobrezinha. O vazio de vê-la ali, deitada no caixão, inerte, naquele dia em que chorei da cabeça doer e do olho inchar, e que iria embora para o centro da cidade pela rua 15 de novembro, não fosse o irmão me achar antes mesmo de eu chegar a andar dois quarteirões, quando o combinado entre nós, crianças, era de que vovó não morreria nunca. Só que ela não sabia deste combinado, e talvez por isso nos traiu. A triste realidade que reza o quanto nossas ações podem nos marcar e como o remorso pode nos acompanhar para o resto da vida. Algo maior ainda do que quando me sumiu o coelho e lembrei que o apertava tanto que ele chegava a gemer e que aquilo devia doer nele. Algo maior, muito maior, muito mais sufocante do que quando me morria um cachorro ou quando vinha gente suja, da cara triste e sofrida pedir um prato de comida na porta de casa porque não tinha outra alternativa senão pedir, e eu dava mas ficava o resto do dia pensando, sem conseguir, eu mesma, comer. Algo maior que eu.
E entre outras dores também muitos amores. Foi naquela rua que escrevi muito da minha história. A casa nova era no mesmo bairro, mas a velha, ela sim guardava coisas. O bolo trazido de surpresa pela tia-madrinha para comemorar meu aniversário, a mesma por quem cultivava esperas ansiosas de final de semana e que o passeio preferido era posar na casa dela para ir ao mercado e fazer bolinhas de sabão com a minha prima. O convite improvisado para as crianças que brincavam na rua. O cessar da brincadeira para ir tomar banho e começar a festa, sem presentes, pois ele já era o bolo. As festas das outras crianças do bairro. Os bailinhos. As brincadeiras no campinho e o noivo que me deixou “esperando no altar”. Casamos dias depois, e não fomos mais nada, nem amigos. As melhores amigas que tive, inclusive a psicóloga por maioria de votos e hoje por profissão, com quem ri, escrevi carta quilométrica que graças a Deus não enviei e passei sagradas horas conversando ao vivo e ao telefone, sob ameaças de que me tirassem o aparelho da tomada. As outras todas que passaram por lá, as poucas que ficaram. As que vinham de outros bairros, estudar, fofocar e trazer bolo de aniversário. Os outros bairros para onde eu ia com as mesmas amigas estudar, fofocar e levar bolo de aniversário. As cartinhas e as frases feitas nelas. O luto pela morte dos ídolos e pela "perda" de um amor, quando parecia que o mundo ia acabar e que nunca mais conseguiríamos andar nas nunvens. As belas mensagens, os momentos inesquecíveis. A volta da escola, onde se compartilhava risadas, sonhos e dúvidas. E na caixa tinha ainda muita coisa. O desabrochar da menina tímida e insossa, bondosa ao extremo, que chegava a ser chata. Aquela que ainda carrega características que aos olhos dos outros parecem frias, pois entende o lado e os motivos de todos, até dos que lhe fazem mal, justificando suas atitudes e às vezes culpando ela mesma. A mudança sob lentes de contato no lugar dos óculos fundo de garrafa (abençoado Dr. João Batista), e de algumas coisas no rosto, mas que, como dizem os amigos, não me mudou a fisionomia, regada a intenso tratamento dentário com aparelho ortodôntico e injeção de auto-estima. O processo de “deixar de ser boba”, que ainda não terminou, mas que progride a passos não lentos, mas naturais, também é lembrança da caixa de madeira escura da casa na outra rua. Os anos universitários em que aprendi a amar a Língua Portuguesa e tomei gosto maior pela literatura. As novas amizades do período diferente e arrojado em que se tem o tempo da juventude e o poder das escolhas nas mãos. O início da profissão, quando percebi que era nada perante o mundo e necessitava escrever uma nova história. Todos esses episódios tinham os mesmos caminhos de volta para a casa, as mesmas ruas, o mesmo céu, fosse ele ensolarado, nublado, chuvoso ou estrelado. Todos esses caminhos de reflexão e descobertas davam naquele bairro, naquela rua, naquela casa.
Mas no dia seguinte começaria um processo de desintoxicação. Não sabia até que ponto, pois lembranças não poderão ser apagadas, mas sabe-se que outras virão no lugar, já que tudo que é presente um dia virará passado, e de tudo que nos é caro, um pouco ficará, mesmo que a mente não dê conta de lembrar explicitamente. Sim, é bobagem achar que as coisas acabam, quando na verdade elas começam. Estão sempre começando, como começa cada dia que colocamos de baixo dos olhos e vivemos. Mas agora, não podia me perder muito nas lembranças, o dia seguinte seria longo e cansativo. Porém, como esquecer certas coisas se da laranja eu só queria um gomo e do limão só um pedaço, enquanto a borboletinha estava na cozinha e o chocolate ainda era doce? O jeito era mesmo preparar a caixa de madeira escura para a viagem. Impossível deixá-la para trás. Estava decidida. Falem o que for sobre o peso da minha mala, ela não vai parar de pesar, pois dela só sairá aquilo que me trair, como a vovó, por exemplo. 


Vanessa Zordan 

DOMINGO


Era domingo. E como é peculiar deste dia da semana, a noite estava morna, pouco significativa. Só a lua que teimou em brilhar, em contraste com o coração dela. Tentou animá-la, mas não pôde. Mesmo assim, destoou da sem-gracisse do dia.
É claro que, se pudesse escolher, a decisão não seria tomada em um domingo. Exatamente por ser um dia sem graça, início de semana para calendários insensíveis, não seria o ideal para terminar um namoro. Términos assim, importantes, caem melhor em uma segunda feira, para que as mágoas sejam choradas durante a semana, ou mesmo em uma sexta. Sexta começa o final de semana, e para os mais animados, a chance de chorar só no sábado, para no outro dia se encher de tédio é maior. Mas num domingo! Dia de começos, não de finais. Dia em que não se pensa muito no que se faz. Mas ela pensou e repensou, decidiu, sentenciou, pesou prós e contras. E deixou-se estar na preguiça, vendo o dia passar.
O peixinho no aquário borbulhava o tédio e a tensão exalada na sala. Ela manteve-se calada, como se aquele momento fosse demorar ainda algumas horas para chegar. Já sabia o que dizer, mas sabia também que na hora sairia tudo diferente. Esperou, escreveu, procurou textos, músicas, algo que pudesse acalmar seu coração. Engraçado pensar no por quê de as coisas acontecerem. Quem sabe se tivessem reencontrado-se alguns anos antes, teria sido diferente. Ou será que aquilo não daria certo mesmo, e a insistência era inútil? Mais inútil ainda era a espera. Por que não ligava logo para ele e acabava com aquele martírio? Por telefone mesmo? Pensando na pieguisse das músicas sertanejas, será que seria covardia mesmo terminar um namoro por telefone em uma noite de domingo? Mas como explicar miudamente o que acontecia com seu coração? Realmente, por telefone não dava, necessitava de olhos nos olhos. Era o mínimo que poderia fazer por ele.
E como em um flash, vieram à tona sentimentos passados, relacionados 1º namoro dos dois. Tinham em comum a adolescência, eram diferentes, mais tolerantes. Agora, do alto de suas condições, o coração se fechara para muitas coisas, outros casos de sentimentos feridos em muitas ocasiões, um longe do outro. Agora julgou que conseguiria resgatar o amor daquele tempo. Mas não conseguiu. O sentimento se tornou nublado, foto em sépia que congelou o passado e não conseguiu colorir o presente. Um sentimento que não se sabe de onde veio, e muito menos (pior!) para onde foi. Não havia mais o sentimento caloroso da paixão, e aquilo lhe doía o coração, lhe gelava a alma. Não sabia se era doloroso ou dolorido, porque nunca conseguiu saber qual dos dois dói mais. Mas doía. Triste sentir-se assim, inútil. Vilã da estória, insensível.
Mas naquela noite ela foi a vilã. E ao ver lágrimas caírem dos olhos dele, chorou de soluçar. Sentiu-se mal, zonza, perdida. Será que era a melhor saída. Retóricas por parte dele tentavam consertar as indisponibilidades, mas não conseguiram convencê-la. Doía, mas não tinha como voltar atrás. Conversas que procuraram garantir a amizade instalaram-se no diálogo, com o moço já rendido pela triste realidade. Um último abraço selou o combinado, "deixa como está mesmo, se você não quer mais, não vai dar certo". E ela o viu partir, e pela última vez o barulho do motor do carro virando a esquina. Confusão de sentimentos. Olhou para o céu. E a lua, pouco solidária, continuou a brilhar. Mas naquele dia, domingo, ela realmente não viu graça.


Vanessa Zordan 

SERÁ QUE FOI SONHO?

Estava lá, sozinho no quarto que dividia com o irmão, sem vontade de sair. Na janela, cortinas azuis; nas camas, colchas com desenhos animados que caracterizavam um quarto infantil, em contraste com as fotos das bandas de rock preferidas. Mundo adulto e desejado. E estava ele, no alto dos seus treze anos, sentado na cama e olhando para os sapatos, que permaneciam sem uso, ao lado de outras coisas espalhadas pelo chão, e pensando. Não conseguia acreditar que havia vivido a experiência da noite anterior. Será que foi sonho? Como tirar a dúvida, se não havia contado para ninguém, e não foi visto praticando a ação? Só estavam ele e ela. Clara era o nome que tilintava em sua cabeça. Será que havia sonhado? Imóvel em sua postura e com o pensamento a milhão, vez por outra pensava em levantar, sem conseguir.
Mas quando foi mesmo que se viu apaixonado? Será que foi na primeira vez que a viu, pois é certo que ela lhe chamou muito a atenção. Porém, era algo inatingível. É claro que aquela criatura perfeita não se interessaria por um sujeito como ele. Assim...assim...tão sem graça, tão indeciso entre a infância e a fase adulta. Mas o que lembrava não era bem isso. Tudo mudou de cara e de cor na noite anterior. A não ser que tivesse sido mesmo um sonho. Mas não era, ele viu, ouviu e sentiu. Difícil acreditar, mas ela também o queria, ou pelo menos o quis. Sim, ela também o desejou. Mas como foi mesmo? Uma sucessão de imagens vieram à tona. A conversa, assim, meio que sem compromisso, quase querendo dizer “nem te ligo” um para o outro. Depois, a descoberta das afinidades. O papo foi esquentando, os sentidos se aflorando, o olfato detectou que aquela química poderia “dar samba”. Mas quando foi mesmo que seu coração disparou de verdade? Quando sentiu desejo sem sequer tocá-la ou na hora do beijo, propriamente dito? Ou melhor, beijos. Foram muitos e dos mais variados. Talvez Clara fosse uma doce menina e gostasse de trocar carinhos. Ele não sabia direito. Achou que aquele jogo fosse uma forma de sedução, uma vez que ela, menina, estava se tornando mulher, e trazia consigo todas as manhas para deixar os meninos loucos. Afinal, essa é a função das mulheres, ou, pelo menos, o que elas mais gostam de fazer. Os vários beijinhos tinham nomes: selinho, de bochecha, de nariz, que era o esquimó, entre outros. Segundo ela, os conhecia desde pequenininha assim, ó. Mas o que mais o impressionou foi o de borboleta, que consistia em esfregar os cílios dos olhos de um nos do outro. Doce arma, pois assim ele pôde ver, bem de pertinho, a menina dos olhos de Clara, e olhar bem no fundo daquele pote de mel. Mel era a cor dos olhos dela.
Depois de tanta informação e tantas novidades, surge o beijo que não era mais o selinho. Devia ser o beijo “beijo” mesmo, era mais demorado, mais molhado, tinha um gosto estranho e que depois foi ficando indescritivelmente bom. Sentia o gosto dela, e o coração dos dois batendo juntinho. Lembrou-se de que não sabia beijar, e precisava disfarçar. Mas será que ela sabia? De certo sim, sabia tanta coisa. Era uma das melhores alunas da sala.
O fato é que quando o beijo acabou, ela saiu correndo, e ele ficou sem saber se de vergonha ou por não querer mais. Foi tão rápido que ele nem pôde ver o rosto dela, e nem olhar de novo no fundo daqueles olhos. O que se passava, será que ela gostou tanto dele assim, ou será que só estava brincando com ele? Por isso, até ali ele não conseguia ter certeza se aquilo acontecera de verdade, ou se ele tinha só sonhado.
Agora, absorto em seus pensamentos e dúvidas, não conseguia se mover, nem encarar a realidade lá fora. Precisava vencer seu próprio corpo e atravessar a porta do quarto. Dali para frente seria fácil, a veria na escola e tiraria a prova. Mas e se ela nem olhasse para ele, confirmando o sonho, ou pior, porque não quer vê-lo mais? E agora? Enquanto isso, o ponteiro do relógio andava, e a vida continuava do lado de fora da janela dele. Era tarde, não adiantava mais, a aula já havia começado. Voltou para cama, pois concluiu que, pelo menos por hora, os sonhos eram melhores do que uma possível e cruel realidade. 


Vanessa Zordan 

FIM DE ANO


E mais um ano acabou. Era seu segundo, fora de casa. Dias de trabalho mais lights, poucos alunos em clima de “passei de ano” e “chegou o natal”. Formalidades expressas em fichas, cadernetas e fechamento de médias. Estávamos chegando ao fim de mais uma batalha. E atardezinha, com as amigas de república, aventuras finais de supermercado, para comprar só umas coisinhas para acabar o ano na cidade da labuta. Prateleiras com enfeites natalinos e preços desprovidos da doçura do panetone. “É a carestia, neguito.” Mas era natal, e o Chocotone da Bauduco foi a última extravagância financeira do ano naquele mercado da terra de outras gentes. Gentes mesmo, pessoas. Outras que não nós, pois não éramos oriundas de lá. Cada uma estava pensando e contando sobre os “seus” mercados, aqueles nos quais se sentiam em casa. Porém, era o que tínhamos, e levamos macarrão para fazer com molho branco no jantar. Pudemos também nos dar o luxo de assistir TV até tarde, e desvendar os mistérios da programação via parabólica, uma vez que naquela terra lá no final do mundo só assistia televisão quem tivesse parabólica. Até parece que estávamos preocupadas com a programação! Mas estava calor, e no outro dia podíamos acordar mais tarde mesmo. Depois da declaração sobre o personagem “tira a camisa” da novela das sete onde disseram que o traseiro dele era conhecido até no Pontal (onde estávamos), o negócio foi mesmo assistir a um programa humorístico e dar risada. Janela aberta, lembranças e promessas das que iam embora, lamentações das que ficavam. Mas risadas petrificavam o momento, que parecia que não ia acabar. Era aquela nostalgia de quem não sabia como seria à partir dali. Pensar no ano seguinte, programar ações, prometer sobre o que não vai deixar de fazer, ou sobre os erros que não vai repetir, uma vez que se sabe que errar é humano e que o desacerto (aquilo que se faz tentando acertar) está em nós e é da nossa natureza humana e desajustada. Mas ali, naquela hora, não importava nada daquilo, nem qualquer tipo de preocupação. Apesar de sabermos de todos os nossos medos e anseios, estávamos em paz ao sabor do espírito natalino. Íamos para a casa. Que doce sensação aquela. 

Vanessa Zordan 

MINHA VERGONHA

Pobre menina
tão pequenina
moletom velho e furado
saia de malha,
chinelinho Hawaianas
surrado, surrado...
num frio de começo de inverno
terno e cruel.
Olhinhos vivos,
quer colocar sozinha
sua trouxinha no bagageiro do ônibus.
Tão pequenina quanto a menina,
a trouxinha se encaixa no
primeiro cantinho que cai,
e a pobrezinha canta a
alegria de sua primeira viagem de ônibus.
A tão grandiosa experiência
da pobre e pequena menina
me deixa em frangalhos,
e faz pequenino
o meu coração. 


Vanessa Zordan 

POEMINHAS SEM TÍTULO

I
Já que Carlos nasceu para ser gauche
E virou poeta
Meu subconsciente permanece firmemente do contra,
Para ver se tem a mesma sorte.
Quer ser poeta também.


II
E o que eu sei de mim é pouco.
Muito é o que tenho de descobrir,
Uma constelação inteira com estrelas
Maiores e menores que o meu ser.
O problema é que, quando descobertas, elas já morreram,
E eu continuo aqui,
Sem saber de mim.


III
Às vezes eu penso que opto por ser triste
Para não perder a capacidade
De enxergar as coisas.
Quando estou feliz, fico cega.
E cegueira é tudo que menos quero para mim.


Vanessa Zordan 

UM PASSARINHO ME CONTOU


Perguntei para um passarinho
Como é ser livre
Para voar até o sétimo céu.
Pôr as asas na estrada
Ver sol, lua, estrelas
Ir ao léo.
Ele respondeu
Que nem sempre é bom assim não
porque de vez em quando
Você pode até trombar num avião.
E que, além disso, voar sozinho
Acaba perdendo a razão.
É da boa companhia que se faz a viagem.


Vanessa Zordan