segunda-feira, 31 de agosto de 2009

INGRATIDÃO





Eu estava na tenra idade dos oito anos. Era sabida para andar na vizinhança, mas não dominava caminhos mais distantes. Insegura, perdera a carona da prima/babá para a escola por ordem expressa de minha mãe “Você tem que aprender a andar sozinha”, dizia ela. Além disso, minha prima não poderia mais me buscar no horário em que eu saía. Ia estudar, me parece. Eram tempos mais tranqüilos, a cidade era pacata e não oferecia perigos.  Sobre o caso, meu irmão, palpiteiro, acrescentava: “É fácil. É só pegar a rua que passa do lado da escola e ir reto até chegar no bar do “Dócio”. Depois você sabe chegar em casa!” “Como, sei?”Isso porque não era com ele. Eu não queria voltar sozinha! E da garupa da bicicleta da prima/babá observei que havia uma turminha que fazia sempre o mesmo caminho e que era parecido com o meu. Um era da minha sala, e tinha um menino maior com eles, que parecia ser responsável pelos outros. Será que era bravo? Só dele ser grande já me enchia de medo, um terror incontrolável. A professora da pré-escola sempre nos dizia que não era para nos misturarmos com os alunos grandes, pois poderiam nos bater. E me veio à memória o dia em que eu e um coleguinha saímos da sala para ir ao banheiro e quando voltamos, tocou o sinal do recreio das crianças maiores. Pronto! A porta estava trancada e ficamos apavorados. O menino começou a bater na porta e a chorar, pedindo para que a professora abrisse. Foi um escândalo, a escola toda ficou sabendo, e depois disso a professora nos explicou que as crianças grandes não eram tão más assim. Mas, nunca se sabe! Portanto, não me atreveria a pretender voltar com eles para casa e nem sequer a perguntar se podia. Pensei em segui-los, assim andaria menos tempo sozinha. Incubei a idéia, tracei o plano. Eles não poderiam me ver. Meninos não gostavam muito de se misturar com meninas. Na saída da escola sempre xingavam a até jogavam pedras nos seres do sexo oposto. Estaria num “mato sem cachorro” se eles me descobrissem. Mas correria  o risco.
Chegou o dia, minha prima não iria mais me buscar. Sob uma enxurrada de recomendações de mamãe para que tomasse cuidado e não olhasse para o lado, fui para a escola certa de que meu plano teria êxito. Tocou o sinal da saída e esperei que meus "companheiros" saíssem na frente. Esperei também que se adiantassem um pouco, para que eu ficasse de longe e eles não percebessem que eu os acompanhava. Tudo transcorreu muito bem, até que eles dobraram uma determinada esquina, depois de muito andar. Então foi um susto. Previ que morassem mais perto de casa, mas calculei que pelo tanto que já havíamos andado, minha casa deveria estar próxima. Quando somos crianças, tudo parece tão mais longe! As coisas parecem maiores também. Deve ser por causa do nosso tamanho e o de nossas pernas. Então fiz o que meu irmão falou. Andei mais um pouco, tensa, até avistar o bar dos doces da minha infância e me sentir aliviada. Realmente o caminho era fácil, mas eu continuava não querendo voltar sozinha para casa. Então passei a acompanhar os meninos todos os dias. O plano era o mesmo, esperava que eles saíssem, se adiantassem, e seguia atrás, na segurança de saber que teria uma companhia, meio torta, mas teria. Também percebi que quando eles viravam a esquina era sinal de que não faltava muito para chegar à minha casa. Mas ainda tinha medo de ser descoberta. E se eles percebessem que eu os seguia e brigassem comigo? Provavelmente o fariam, ou zombariam de mim. Certeza!
Até que um dia, saí quase junto deles. Achei que ficaria estranho esperar que eles se adiantassem, pois estavam paralelos a mim, porém do outro lado do canteiro onde ficava o São Francisco. Na minha escola havia uma estátua de São Francisco de Assis bem no meio de um canteiro. Tanto fazia irmos por dentro ou por fora, pela calçada. Chegávamos à rua 15 de novembro, a que pegávamos em linha reta.
O menino maior me viu, e veio em minha direção. Fiquei paralisada, sem saber o que fazer. Teria sido descoberta? Estariam eles esperando uma oportunidade para me desmascarar? Não entendi muito aquele movimento dele em minha direção. Ao chegar mais perto, escutei-o dizer: “Você está sozinha, não? Venha conosco, sei que moramos perto”. Estremeci! Mas ao decifrar a mensagem, vi aquele rosto calmo, aquele sorriso bonito e o jeito bondoso do menino maior. Deu-me a mão, e fui sem pensar. O irmão mais novo, da minha sala, pareceu não ter gostado muito, mas nem liguei. Era pequena, mas já sabia apreciar boa companhia. E depois disso, todos os dias voltava para casa com eles, agora sem precisar de convites. Teria sido meu primeiro amor, caso eu fosse afeita a precocidades. Mas como não era, logo fiz amizade com algumas meninas da sala e a necessidade de me auto-afirmar na turma foi maior. Fui me distanciando dos novos amigos, à guisa de gente que nem ligava muito para mim. Renunciei, não sei o porquê, a companhia de quem me estendeu a mão, somente para que pudesse fazer parte da turma das meninas que eram constantemente elogiadas pela professora e merecer o prêmio de voltar para casa com elas.
Quando me dei conta disso, senti uma melancolia muito grande. O menino maior nem tinha nome, era relação na qual não se fazia questão de formalidades nem posições perante os mais velhos. Deve ter estranhado meu afastamento, até comentou certa vez em tom de cobrança branda. Crianças nem sempre sabem retribuir favores, e me sentia como se devesse algo, uma traição involuntária. Até hoje, quando lembro da minha negligência, sinto um gosto amargo na boca. Flor que se fechou na condição de ser somente espinho, ingrata.


Vanessa Zordan