segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

CAIXA DE MADEIRA ESCURA


A tarde caiu cinza na nova casa, que não era tão nova assim. Já tinha um ano ali, mas aquela era a última noite que eu passaria nela. No dia seguinte ia embora da cidade sozinha, e a minha família mudaria de novo de casa, e agora de bairro. Mas lembranças mesmo eu tinha da outra casa, aquela maior e mais feia, dobrando a esquina. Aquela sim trazia lembranças, embrulhadas na caixa de madeira escura, porque eu gostava mais assim, escuro. Tanto que só comprei móveis claros por insistência de mamãe. E depois não consegui comprar mais nada escuro porque não combinava com o resto. Naquela caixinha havia lembranças de muitos tempos, uma seqüência cronológica que se bagunça ao sabor dos sentimentos, dolorosa e ao mesmo tempo feliz. Dores que ficaram marcadas no coração, com gosto de “que pena, não posso voltar atrás.” O mesmo dó que sentia das bonecas no frio e necessitava levantar da cama e cobrí-las com a toalha em cima da cadeira, sob protestos da vovó, doce lembrança ainda vivente, que dizia para eu ir dormir que “boneca não sente frio não”. A caixa de madeira escura, que guardava o amargo da ausência de minha mãe quando tinha que trabalhar a noite, o que era regularmente. A peraltice de esperar a hora do meu pai ir buscá-la para me jogar na cama da vovó e fazer ela ir me buscar e me colocar na minha cama. A negligência com a mesma avó porque ela vivia atrás de mim e do meu irmão. Crianças que éramos, renegávamos os cuidados, achávamos chatas as observações e gritávamos com a pobrezinha. O vazio de vê-la ali, deitada no caixão, inerte, naquele dia em que chorei da cabeça doer e do olho inchar, e que iria embora para o centro da cidade pela rua 15 de novembro, não fosse o irmão me achar antes mesmo de eu chegar a andar dois quarteirões, quando o combinado entre nós, crianças, era de que vovó não morreria nunca. Só que ela não sabia deste combinado, e talvez por isso nos traiu. A triste realidade que reza o quanto nossas ações podem nos marcar e como o remorso pode nos acompanhar para o resto da vida. Algo maior ainda do que quando me sumiu o coelho e lembrei que o apertava tanto que ele chegava a gemer e que aquilo devia doer nele. Algo maior, muito maior, muito mais sufocante do que quando me morria um cachorro ou quando vinha gente suja, da cara triste e sofrida pedir um prato de comida na porta de casa porque não tinha outra alternativa senão pedir, e eu dava mas ficava o resto do dia pensando, sem conseguir, eu mesma, comer. Algo maior que eu.
E entre outras dores também muitos amores. Foi naquela rua que escrevi muito da minha história. A casa nova era no mesmo bairro, mas a velha, ela sim guardava coisas. O bolo trazido de surpresa pela tia-madrinha para comemorar meu aniversário, a mesma por quem cultivava esperas ansiosas de final de semana e que o passeio preferido era posar na casa dela para ir ao mercado e fazer bolinhas de sabão com a minha prima. O convite improvisado para as crianças que brincavam na rua. O cessar da brincadeira para ir tomar banho e começar a festa, sem presentes, pois ele já era o bolo. As festas das outras crianças do bairro. Os bailinhos. As brincadeiras no campinho e o noivo que me deixou “esperando no altar”. Casamos dias depois, e não fomos mais nada, nem amigos. As melhores amigas que tive, inclusive a psicóloga por maioria de votos e hoje por profissão, com quem ri, escrevi carta quilométrica que graças a Deus não enviei e passei sagradas horas conversando ao vivo e ao telefone, sob ameaças de que me tirassem o aparelho da tomada. As outras todas que passaram por lá, as poucas que ficaram. As que vinham de outros bairros, estudar, fofocar e trazer bolo de aniversário. Os outros bairros para onde eu ia com as mesmas amigas estudar, fofocar e levar bolo de aniversário. As cartinhas e as frases feitas nelas. O luto pela morte dos ídolos e pela "perda" de um amor, quando parecia que o mundo ia acabar e que nunca mais conseguiríamos andar nas nunvens. As belas mensagens, os momentos inesquecíveis. A volta da escola, onde se compartilhava risadas, sonhos e dúvidas. E na caixa tinha ainda muita coisa. O desabrochar da menina tímida e insossa, bondosa ao extremo, que chegava a ser chata. Aquela que ainda carrega características que aos olhos dos outros parecem frias, pois entende o lado e os motivos de todos, até dos que lhe fazem mal, justificando suas atitudes e às vezes culpando ela mesma. A mudança sob lentes de contato no lugar dos óculos fundo de garrafa (abençoado Dr. João Batista), e de algumas coisas no rosto, mas que, como dizem os amigos, não me mudou a fisionomia, regada a intenso tratamento dentário com aparelho ortodôntico e injeção de auto-estima. O processo de “deixar de ser boba”, que ainda não terminou, mas que progride a passos não lentos, mas naturais, também é lembrança da caixa de madeira escura da casa na outra rua. Os anos universitários em que aprendi a amar a Língua Portuguesa e tomei gosto maior pela literatura. As novas amizades do período diferente e arrojado em que se tem o tempo da juventude e o poder das escolhas nas mãos. O início da profissão, quando percebi que era nada perante o mundo e necessitava escrever uma nova história. Todos esses episódios tinham os mesmos caminhos de volta para a casa, as mesmas ruas, o mesmo céu, fosse ele ensolarado, nublado, chuvoso ou estrelado. Todos esses caminhos de reflexão e descobertas davam naquele bairro, naquela rua, naquela casa.
Mas no dia seguinte começaria um processo de desintoxicação. Não sabia até que ponto, pois lembranças não poderão ser apagadas, mas sabe-se que outras virão no lugar, já que tudo que é presente um dia virará passado, e de tudo que nos é caro, um pouco ficará, mesmo que a mente não dê conta de lembrar explicitamente. Sim, é bobagem achar que as coisas acabam, quando na verdade elas começam. Estão sempre começando, como começa cada dia que colocamos de baixo dos olhos e vivemos. Mas agora, não podia me perder muito nas lembranças, o dia seguinte seria longo e cansativo. Porém, como esquecer certas coisas se da laranja eu só queria um gomo e do limão só um pedaço, enquanto a borboletinha estava na cozinha e o chocolate ainda era doce? O jeito era mesmo preparar a caixa de madeira escura para a viagem. Impossível deixá-la para trás. Estava decidida. Falem o que for sobre o peso da minha mala, ela não vai parar de pesar, pois dela só sairá aquilo que me trair, como a vovó, por exemplo. 


Vanessa Zordan 

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